segunda-feira, 15 de junho de 2009

Um universo chamado Beira-mar

Por Sâmila Braga

“Sente só o cheirinho da água salgada!”. É assim que o garoto Renato Andrade, de quatro anos, compartilha a Beira-Mar com sua amiguinha. Ele se equilibra no imenso banco quebrado que circunda a orla marítima, e aspira com vontade a fragrância do mar cearense. Renato é filho de Teresa Andrade, 21 anos, turista de Recife, que visita pela terceira vez Fortaleza. “Coloquei o carro lá embaixo, pensando que ia encontrar as coisas que eu vi da outra vez, mas não achei”, se queixa Tereza. Ela vem do pôr-do-sol mais belo da cidade, na Ponte dos Ingleses, Praia de Iracema, e caminha com olhos ondulantes pelo calçadão que agora pertence à Beira-Mar.


A Avenida Beira-Mar esbarra no aterro da Praia de Iracema para, alguns metros à frente, voltar a circular. Nessa região fica o que se conhece por “espigão”, talvez pela semelhança com o cereal. São as pedras incrustadas na areia num formato natural, que rodeiam um barco velho e esquecido, enferrujado, que aponta uma proa imponente. Pontiagudas, hexagonais, nada simétricas, as pedras vão seguindo junto do calçadão por alguns metros. À noite, elas são a escada dos amantes, que vão ao lugar em busca da negrura do mar. Ou apenas das mães impressionadas apontando às crianças a imensidão do oceano noturno. Para lá, corredores suados, patinadores, skatistas. Para cá, uma família colorida de hippies, pedintes e enamorados com seus espertos poodles. Esses são apenas alguns dos milhares de personagens que compõem o início da Beira-Mar fortalezense.


Mais alguns passos, e o agito se intensifica. Desde seu começo, a Beira-Mar se compõe não só dos vizinhos que a frequentam, saindo dos gigantes prédios laterais, como também da gente de Fortaleza e do mundo, atraída pelas belezas tão famigeradamente propagadas pelas agências de turismo. Todo tipo de gente está no calçadão. Ele não tem preconceitos. Todos os pés tocam o piso que está sendo trocado por um novo, pela prefeitura. Os blocos com pacotes de azulejos ficam dispostos displicentemente, atrapalhando a passagem das pessoas que disputam um pedacinho do extenso corredor, já poluído de gente, de vendas e de barulho. Bares e altos prédios guerreiam com a avenida tumultuada por toda a poluição sonora vinda do cada ponto. Carros, conversas e até um trenzinho de alegria infantil. Sem esquecer os gritos de vendedores, a música dos estabelecimentos e os latidos dos pequenos cães, que saltam excitados com a agitação da rua.

Uma, duas, três vezes em menos de meia hora. Esse é espaço de tempo que um mesmo show de humor é anunciado no alto-falante de um velho carro ou mesmo na garupa de uma bicicleta cargueira. Esse é mais um dos ruídos que movimentam os ouvidos inconformados e acostumados dos corredores da Beira-Mar. Fazer cooper à noite já é mais do que normal. As pessoas que praticam a modalidade, aliás, são maioria no calçadão. Paulo Sérgio Reis é advogado e mora em Jaguaribe, região centro-sul do Ceará. Passando alguns dias na Cidade da Luz, ele aproveitou para se exercitar na Beira-Mar. E um dos problemas assinalados por ele foi poluição sonora.

Tem início por estes metros as barracas coloridas na maresia da noite. Já fora da areia, saltantes aos olhos, quadros trabalhados por artistas, formam uma bela parede apresentada a quem passa. Os pintores formam um grupo, que chega ao local às cinco da tarde e termina seu expediente quando o movimento se encerra. A informação é de Lúcio Pontes, que vende seus quadros há 30 anos naquele espaço. “Acho que é a melhor galeria de arte de Fortaleza”, orgulha-se, referindo-se ao prolixo calçadão. Admirador do pintor catalão Salvador Dali, Lúcio vê na cidade grande potencial que está sendo desperdiçado.

O barulho que aumenta e as cores que se multiplicam são o rastro que leva à feirinha. Indescritível, pela variedade de elementos e produtos, ela abarca o regional para o estrangeiro e o regional para o próprio fortalezense. Couros, rendas e demais artesanatos não estão desacompanhados. A globalização chega com tudo à Beira-Mar. Camisas com os mais variados textos e anedotas divertem quem para e lê. Bijuterias, vestidos, brinquedos, móbiles, biquínis, bolsas, enfim, estampas, formas e charmes. Quase tudo que se imagina é comercializado na feirinha da Beira-Mar.

E, pelo calçadão que se segue, impetuoso e ondulante, é fácil perceber a diversidade. Quiosques às pencas. Alguns luxuosos, outros nem tanto. Todos encaram edifícios imensos, de fazer curvar o pescoço. É a parte de Fortaleza que tem mais ares de metrópole, isso por ser o cartão de entrada da cidade. Seguindo no calçadão, o transeunte passa pelas quadras de vôlei e basquete, que à tarde abrigam amadores. E quem quiser encontrar o mar depois do esporte, vê ao lado o tapete de corais de cor indefinível, como se fosse forrado por farinha de areia e pedrinhas pretas. Além de folhas, cabos de vassoura, uma camisa esquecida e muito odor. Este vem da enorme boca de concreto que expele líquido escuro e malcheiroso em direção ao mar. O esgoto vem dos gigantes de pedras, que parecem não saber que degradam o próprio jardim de casa.

Logo depois das armadilhas de pedra-coral na areia, uma mini-pracinha apaixonada. Bancos velhos assentam os casais. E esses voltam a aparecer, contemplando a vista no Anfiteatro Flávio Ponte. Antes conhecido como Anfiteatro da Volta da Jurema, reformado em 2006, o espaço comporta shows de músicos nativos e até reuniões municipais. Assiste também as vendas de algumas senhoras que expõem suas bijuterias em mesinhas de toalha branca. É mais um pedaço de feirinha. Transferida para o local há poucos meses, como revela Liduína Barreto, 52 anos, professora da Regional IV. Ela, que está de licença do emprego, aproveita para vender adornos feitos nas horas vagas.

Andando um pouco, passando sempre por famosos restaurantes, se encontram grades e barras de exercícios solitários. De um lado, um prédio-espelho mirando o mar e, do outro, uma quadra para bicicletas e uma pista de skate. Nessa última, uma figura franzina, de brilho intenso no olhar, assiste atento às quedas e aos giros daqueles que se arriscam na concavidade da pista estreita. Com 10 anos, Carlos Eduardo Alberto vem com a tia que trabalha perto dali. “Eu acho bonito”, confessa, assustado. O garoto mora no Mucuripe e conta que sempre traz o skate dado pela madrinha, mas naquele domingo havia esquecido. O que não importava, porque sua imaginação estava executando as manobras para ele.


Iracema. É o ponto ulterior. Na estátua, as turistas de Recife, Mazé Moraes, 60 anos, e Graça Medeiros, 55 anos, batem fotografias. A foto seguinte é no patinete motorizado dos policiais. Graça pede ao guarda que tire a foto com ela sobre o patinete. Antes de sair, ela é alertada por um dos militares para que tome cuidado com a câmera, pois a área, “não está para brincadeira”, embora a turista afirme: “Fortaleza está mais calma que Recife”. Encantadas, Mazé e Graça se despedem, ansiosas pelos quatro dias que restam na Cidade da Luz.

Deixando para trás Iracema, já sem o vigor do arco e com uma mão decepada, chega-se ao local onde, à tarde, os esportistas do windsurf se reúnem para conversar e praticar. Mais à frente, acompanhando o velho piso do calçadão, um ambiente de menor estardalhaço, de passagem provisória. É possível sentar num banco observando as árvores retorcidas ou meninos que brincam de enganar a gravidade em “saltos mortais”. A atenção volta-se frequentemente aos apitos de um cruzeiro que se distancia ou, para a rachadura de três metros que divide a calçada. Embarcações amontoadas, uma mulher num esforço mecânico na bomba d’água, os ziguezagues de coqueiros e as pessoas displicentes que passam por tudo sem perceber. Um Pálio preto que estaciona e, do qual, uma loira de roupas minúsculas desce acompanhada e entra num prédio azul e branco, sem nome. Quem passa no ônibus em frente ao prédio, já não enxerga a paisagem. Muito menos o que há por trás dela. Bêbados, bicicletas, o apito do navio quase se extinguindo e o vento. Mas o prédio sem nome testemunha tudo.


Encerrando a caminhada, o ponto que marca o final da Beira-Mar é o Mercado dos Peixes. Hoje urbanizado, dividido por boxes, antes era um aglomerado de barracas de madeira e teto de palha. Fica de costas para um paredão de prédios que atormentam a Defesa Sanitária, por invadirem a praia. Nessas redondezas também ficam os pescadores, que fornecem parte dos produtos vendidos no Mercado dos Peixes. Os turistas e visitantes das quatro barracas que ficam do lado do Mercado se deliciam com os camarões, as lagostas e os peixes, comprados com os vendedores e preparados pelos donos das barracas. O box de número 16 do Mercado dos Peixes pertence ao Seu Pelé, apelido que nem ele sabe como ganhou. O nome completo é Francisco José Lourenço, de 44 anos. Ele diz que consegue renda mensal que varia entre R$ 3 mil e R$ 4 mil, com a qual sustenta a família. Mora no Mucuripe, a cinco minutos de onde trabalha, e garante que o seu serviço não é nada estressante. “É trabalhando e ao mesmo tempo se divertindo”, confessa sorridente. Seu Pelé começa às cinco da manhã e vai até a hora do almoço. Só retorna ao box às cinco da tarde, para fechá-lo às dez da noite, conforme a procura. E assevera que essa é grande nesse horário.

Sentada num canto, virada para as velas do Mucuripe, fica dona Ana Paula Nunes. Aproveita a freguesia do Mercado para vender seus quitutes. Com um ar sereno, a aposentada fala dos prédios indiferentes à favela onde mora. “Isso aí é a burguesia, minha filha. Eles já fazem questão de construir bem alto, pra nem ver as caras dos pobres”, aponta inconformada. Os contrastes aos quais, dona Ana Paula se refere se dão principalmente no fim da Beira-Mar, onde do alto de sua experiência ela constata o que poucos se importam em observar.


P.s. Não pude colocar as imagens que fiz poruqe infelizmente apagaram-na do meu celular sem minha autorização.